Belchior completa 70 anos. E vocês precisam parar de dizer que ele sumiu

Belchior completa 70 anos. E vocês precisam parar de dizer que ele sumiu

São Paulo. Agosto de 2014. Da janela do avião, parece mais assustadora ainda. O céu é arranhado não só pela força dos edifícios, mas, pelos silêncios com pressa que dobram esquinas e perdem o agora. No fone, uma canção sintetiza o que, em meu coração, desaba: Eu me lembro muito bem do dia em que eu cheguei, jovem que desce do norte pra cidade grande, os pés cansados e feridos de andar légua tirana. Antônio Carlos Gomes Belchior Fontenelle Fernandes é o nome por trás desses sons e palavras que, claro, são navalhas mortais. Não é assim que o rapaz latino americano construiu suas canções? Tortas, negras, selvagens e cruéis, mas, bem menores que a maldade da vida. E só quem mora na região alta do país sabe o que é sentir a lei da gravidade social. Disso, Belchior já sabia. E fez dos dilemas do indivíduo a força motriz de toda sua obra. Dilemas meus, seus, nossos. Dilemas dele, este mundo distante que não nos foi dado o direito de visita. Assim como nós não o concedemos a quem não nos é caro.

Concordamos. Sim. Concordamos que se trata de um artista sensível, máximo. Belchior, o “Bob Dylan do sertão”, entendeu e sintetizou, como nenhum outro compositor, os dilemas de um país confuso, de uma geração desesperançada, de uma nação de esquecidos chamada Nordeste. Ouvir Fotografia 3×4 na época do lançamento do meu livro em São Paulo foi o momento mais impactante da minha vida até agora. Eu chorava, ria, sentia medo e nada disso se derramaria não fosse a lâmina fatal de Belchior. Quantos de vocês não devem ter passado por isso também? Quem nunca ouviu ‘Aparências’ e sentiu todo o peso de um relacionamento sem alma? E o que dizer da carga social de ‘Alucinação’ e ‘Conheço o meu lugar’? E os sonhos de uma juventude ávida por liberdade em ‘Como nossos pais’ e ‘Coração Selvagem’? É notável o poder da persona que o país tanto clama por um retorno. Mas, eu pergunto: quem todos querem que volte? O Belchior de ‘Alucinação’ ou Antônio Carlos, nordestino de Sobral, um homem repleto de dilemas, confusões, angústias e porões como qualquer um de nós?

Quem é o Belchior do ‘Volta, Belchior’ que já virou desde hashtag à matéria do Fantástico? O homem ou a obra? Quantos dos que clamam por um retorno do artista aos palcos já tiveram sua reclusão espontânea tratada como pauta diária por todos ao redor? Por que o clamor popular não se volta para que sua paz de espírito seja respeitada? Afinal, é visível que o modo como Belchior sumiu foi brusco, entre dívidas acumuladas e carros estacionados em lugares públicos. Só um espírito bastante pressionado pelo mundo toma uma atitude tão Supertramp como essa. Lembram de Geraldo Vandré? Vocês já viram a última entrevista que ele concedeu após anos de reclusão artística? Recomendo. Diz muito sobre o que leva alguém a buscar um pouco de paz nesse inferno de pedra e paixão que é a fama.

Mestre, agora me volto pra você como se estivéssemos frente a frente: Fica bem, cara. Fica na boa. Não se importe com um possível retorno porque nunca houve partida. Os trens são seus. As estações também. Nós te ouvimos todos os dias e isso basta. Não receba equipes de reportagem se isto lhe parecer invasivo. Chame toda a imprensa quando se sentir à vontade. Esconda-se dessa loucura toda como os pássaros que fogem pro norte no inverno. Apareça quando seu coração dilatar a ponto de caber mais mundo. Você é imenso, Belchior. Maior que tudo o que pudermos escrever sobre sua história. Por isso, fica em paz, fica na boa. Que o país mude de narrativa e entenda que você jamais esteve tão presente.

Parabéns, obrigado por esse disco e por todas essas coisas no meu peito.

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Escritor, compositor, produtor cultural e geminiano. Prefere orquestrar silêncios que causar barulho. É fã das canções que só são absorvidas usando fone de ouvido num lugar isolado.