Pedro Sá Moraes – Prazer do Princípio ao Fim

Pedro Sá Moraes – Prazer do Princípio ao Fim

Em seu novo disco, Pedro Sá Moraes vira de ponta-cabeça os valores estéticos da canção e mostra que música é algo que está muito além do princípio do prazer.

Há uma marchinha mineira, composta por Renato Negrão, que diz “Que bom ser contemporâneo seu / Assim você não precisa / Atravessar paredes / Nem eu”, exaltando a qualidade criativa presente em muitos artistas do nosso país e do mundo. Ouvindo Além do Princípio do Prazer, o novo disco de Pedro Sá Moraes, compreendo exatamente o que ela quer dizer.

Desafiando de maneira brilhante as convenções musicais, o cantor e compositor carioca, integrante do Coletivo Chama (talvez o grupo mais interessante em nível artístico e intelectual do momento, que possui em suas linhas cabeças como as de Thiago Amud e Thiago Thiago de Melo) tece narrativas que misturam Schoenberg e Gilberto Gil, Freud e Tropicália, o maestro e o cancioneiro popular. Híbrido, chega aos ouvidos como um disparo de arma de fogo carregada de universos lingüísticos cheios de vida em estado embrionário, um big bang capaz de lançar luz ao cérebro e ao coração sem perder a intensidade, música cerebral sem perder a ternura.

Já em Alarido, a faixa de abertura, composta em parceria com Thiago Amud, somos tomados pela força e vigor do discurso pontuado por uma bateria marcante e riffs de guitarra que em alguns momentos mais parecem ter saído de alguma partitura perdida de Stockhenhausen. Não Quer que o Mundo Mude, A Hora da Estrela e Ela Vertigem flertam com a música eletrônica de maneira muito bem pensada e produzida, chegando a um resultado talvez nunca antes alcançado na música nacional, com exceção de Deriva, de Kristoff Silva. Na parte mais tropical do repertório, por assim dizer, temos as canções Pra Nós e Não é Água, enquanto O Olho da Pedra, Eunuco e Salmo 23 mostram o lado mais turvo e desafiador de um disco que é por si só já é um fenômeno de transgressão dentro do cenário atual, mostrando que não precisa ser incompreensível – sob a carapuça de algum conceito filosófico inatingível – para alargar as fronteiras da canção. Que dá para fazer isso com sensibilidade e profundo senso de localização espacial e temporal, do mesmo jeito que já fazem artistas como Sylvio Fraga, Fernando Vilela, Antonio Loureiro, Thiago Amud, Rafael Martini e alguns outros que fazem da canção uma manifestação do espírito que está muito longe do comodismo ou da extinção.

A linguagem, nas nove faixas do álbum, é utilizada com elegância e refinamento, nunca subestimando a inteligência do ouvinte. São signos que inundam, envolvem e transformam sua apreensão em prazer. Além dele, é preciso também contar, dizer o mundo, o que por si só pode transformar-se em objeto de prazer. Onde fica, então, esse além? Me parece que ele mora justamente no princípio, no início, na largada e não na linha de chegada.  Prazer como parte desenvolvida para o princípio de vida, música como fenômeno além desse princípio, metamúsica incrustada daquilo que a vida esconde nas dobras do corpo.

A metafísica de Aristóteles, o seu nome, vem do fato de, durante a organização dos tratados do filósofo grego por Andrónico de Rodes, os livros que a compõem terem sido colocados depois dos livros da Física (do grego metà ta physikà). Portanto, Metafísica nada mais era do que a palavra usada para indicar a localização dos livros e o termo nunca havia sido usado por Aristóteles. Esse tipo de realocação parece ocorrer também aqui. O trabalho de Pedro Sá Moraes não pode ser catalogado, não com os critérios que atualmente possuímos (configurando-se dessa forma em uma qualidade), portanto é normalmente colocada ao lado da seção “Música” – assim sendo, ele está ao lado dela, tornando-se Metamúsica.

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Escritor, jornalista e editor. Responsável pela curadoria de conteúdo do Jardim Elétrico.