Som e Fúria: Lamento Afogado

Som e Fúria: Lamento Afogado

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Sempre tentaram me convencer de que viver é bom. Desde criança ouço isso como verdade absoluta, seja nos corredores dos colégios que frequentei ou na boca dos parentes mais próximos, que reproduziam os discursos que ouviam na televisão ou nas missas de domingo. No fundo eu sempre soube que não era assim, mas não ousava falar em voz alta. Ninguém gosta de encrenqueiros, era o que minha avó dizia quando eu tentava confessar pra ela, e só pra ela, que viver dói.

Com o tempo, aceitei mentir para mim mesmo e para o resto do mundo e agora estou aqui, desperdiçando minhas ideias em um guardanapo no canto escuro de um balcão de bar enquanto cobiço as pernas e os seios da moça sentada na mesa logo em frente com sua amiga. Não tento ser discreto, não tenho tempo. Na verdade, é paciência o que me falta mesmo. Não suporto perder, por isso não gosto de jogos, aliás, não tenho nada de valor para apostar. Perdi tudo desde que resolvi ser a porra de um lobo solitário, vagando pela noite vazia como fazem os amigos vira-latas; em contrapartida, ganhei a liberdade de dizer e fazer o que eu bem entender. Não foi uma boa troca, admito, mas é melhor que nada.

Ela pensa saber o que está acontecendo e sorri. Talvez seja o guardanapo e a caneta, deve pensar que sou um escritor bêbado buscando redenção numa garrafa de Jack Daniels com 45 por cento de álcool e achar isso muito romântico. Pobre garota. Mesmo que esteja certa quanto ao escritor bêbado, erra feio no que se refere ao romantismo e a redenção. Sou capaz de amá-la, desde que ela seja capaz de foder como um animal.

Nos alto-falantes Billie Holiday canta “One for my Baby (one more for the road)” e eu sinto a noite nos ossos. Imagino a moça da mesa à frente sem roupa, tento adivinhar o que usa por baixo da camisa decotada sob a jaqueta de couro, de onde deixa aparecer uma tatuagem no antebraço que parece ser um trecho de música ou poema. Penso na vaidade por trás do ato de levantar a manga para que todos possam ver a marca daquilo que talvez seja um passado que ela agora finge não querer esquecer e descubro que posso realmente amá-la por sua fraqueza, pela mentira que insiste em contar para todo mundo quando diz que já passou. Ninguém gosta de encrenqueiros, afinal.

Pego outro guardanapo, dessa vez certo do que vou escrever. Olho pra ela enquanto escrevo, ela sorri, mexe nos cabelos e baixa a cabeça em um sinal de falsa timidez. Porra! Não gosto de jogos, mas ela fica mesmo muito atraente fazendo isso. A amiga me encara pela primeira vez na noite, seu semblante não é muito preciso, parece dizer que se preocupa com a amiga, mas que está feliz por ela. Não. Acho que acabei de inventar isso. Não deve estar pensando em nada além de si mesma (em como está bonita, atraente, em como eu pude não tê-la percebido e ali e ter prestado atenção justamente na sua amiga apagada e sem graça que não tem estômago pra bebida).

Peço para o garçom levar o bilhete até a mesa dela. Ela o acompanha com olhos atentos, bate os dedos na mesa. Recebe o garçom com um sorriso largo e abre o guardanapo.

“Não se anime, sou apenas mais um louco no hospício de Deus”. Ela ri, parece gostar, deve achar que se trata de um galanteio. No fundo, todo mundo gosta da desgraça alheia. Levanta e caminha até o balcão, me olhando fixamente. Duas horas depois, estamos no apartamento dela. Ela se entrega, se derrama em minha boca com luxúria e faz com que eu me sinta vivo, excitando todos os meus sentidos. É, sinto que consigo amá-la em seu gozo furioso enquanto cavalga feito nuvem em tempestade.

Depois do orgasmo ela me beija, intensa, descarada, lasciva. E então, por um minuto ou dois, tenho a plena certeza de que viver é realmente bom.

Publicado originalmente na Revista Catwalk

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Escritor, jornalista e editor. Responsável pela curadoria de conteúdo do Jardim Elétrico.