Confessionário: Um Dia Com o Pink Floyd
Vou dividir esta crônica em capítulos.
TIME
Eram quase seis. O sol já cedia à lua seu espaço no infinito. Eu já cedia ao descanso depois de trabalhar o dia inteiro. A TV estava ligada por inércia. Eu só queria ouvir algum vazio no volume 3 para não me achar tão só aqui na sala. Passei a mão no queixo e constatei que precisava me barbear. Lembrei de umas cervejas legais que o Renan comprou pra vender na Mercearia Tropicália e pensei em dar um pulo lá. Também pensei em ouvir Smiths, em comer um Subway e em tantas outras vitais futilidades.
Meu celular tocou. Era minha namorada. Estava com saudades dela e pensei em chama-la para um lanche comigo. Então, já estamos em outro capítulo
WISH YOU WERE HERE
O diálogo foi mais ou menos assim:
– Amor, vem aqui na esquina, eu encontrei…
– Que esquina?
– Na esquina da igreja! Eu encontrei um cãozinho tão pequenininho! Ele precisa de ajuda! Vem aqui!
Na hora, confesso que senti uma certa paralisia. Sei do amor dela pelos animais. Sei que, por ela, nós tínhamos um zoológico em casa. Todo cãozinho ou gato abandonados que vê na rua, ela teima em oferecer abrigo. Mesmo temendo por nossa saúde mental, eu sempre preferi pessoas com esse exagero no coração. O exagero do sentimento é melhor que o monopólio da razão.
– Mas, amor, você sabe que…
– Eu sei, eu sei! Mas, vem aqui. Me ajuda como puder para acharmos uma família pra ele, por favor!
– Ta, tô chegando ai, então.
Minha relutância passava por outro fator crucial. Nós já criamos duas cadelas e não temos como manter outro animal agora. Criar não é simplesmente alimentar e dar um canto para dormir. Criar um animal é participar das suas gincanas irracionais, é dar e receber afeto, é tratar como filho quem te trata como a melhor pessoa do mundo.
HEY YOU
De longe, vi a farda vermelha. Veri, na esquina, olhava para baixo, onde estava uma criaturinha de mais ou menos 30 cm de altura. O sorriso desconfiado dela aumentava a cada passo que eu dava.
– Amor, olha pra ele, olha pra ele…
Acho que pude ver, senão físicas, lágrimas em algum lugar da alma caridosa de Veri. Senti a emoção que ela sentia. Eu podia ver em seus lábios, quase trêmulos, a tempestade que havia no seu coração em ruínas por já saber que nós não seríamos seu lar. O lar do cão com os olhos mais pedintes que já vi. Eles não pediam comida nem tampouco banho ou água. Os olhos daquele cão pediam alento, carinho, proteção e, acima de tudo, amor.
– Vem, cachorrinho, vem!
E, seguindo as palavras dela, ele nos seguiu até em casa. Tinha um andar robusto, porém, desengonçado. Era pequeno e forte ao mesmo tempo. Mas, aparentava uma certa fraqueza espiritual. Tinha marcas de maus tratos pelo corpo. O pelo estava sem brilho e ele parecia ter uns cinco anos de idade. Nosso pequeno já era quase um senhor.
Veri transbordando emoção e eu, confusão. Pois, senão nós, quem, cãozinho?
SHINE ON YOU CRAZY DIAMOND
Ele entrou em casa como se já vivesse há anos conosco. Com uma vitalidade, com uma amorosidade. Largou a anemia lá fora e pareceu estar diante de outro mundo cá dentro. Para os cães, a maior liberdade é ter um limite de mundo e amor eterno a seu lado. O cão não vê graça na vida sem ter alguém para reparar em suas habilidades com o graveto ou nas milhares formas de lamber uma bochecha. O cão não quer ser livre para andar. Ele quer ser livre para amar, não importa o espaço. Por ele, vivia com seus donos na casinha de cachorro no quintal.
Veri o enchia de mimos enquanto tentava alimentá-lo. Logo, nosso amiguinho nutriu um amor inexplicável por Veri. A seguia pela casa inteira com o rabinho balançando. Eu pensava numa solução. Comecei a ligar para meus amigos e chamar alguns por inbox no Facebook. Já era noite e, enquanto eu tentava doar o cãozinho, uma silenciosa relação se estabelecia entre Veri e ele. Uma relação que se dava, basicamente, pelos olhos de amor que ele tinha.
– Amor…
– Oi, bebê!
– Você já conseguiu achar um lar para o Pink Floyd?
– Para quem?
– O Pink Floyd. É o nome dele!
SPEAK TO ME
Recebi várias promessas para adoção do Pink Floyd, mas, nenhuma tão contundente quanto a do Seu Marcos, meu moto-táxi nas horas de perrengue absoluto. Foi quando tivemos que sair para comer e comprar algo na farmácia. Eu já o tinha oferecido para meio mundo, então resolvi incluir o Seu Marcos na lista de possíveis famílias do Pink.
E Seu Marcos se interessou de prontidão. Ele e um moto-táxi que estava a seu lado. Nisso, eu já tinha conseguido algumas promessas pro dia seguinte, mas, nada certo. Minha única certeza, até então, era que Seu Marcos ia lá em casa na manhã seguinte.
COMFORTABLY NUMB
Sobre um pano azul que há horas atrás ainda era uma camisa da Veri, Pink repousava, estático, e aparentando cansaço, num canto quentinho da nossa sala. Ele e seus olhos de amor. Ele e sua necessidade de abrigo. Ele dormia sob a estante de livros. Dormia sob Neruda, Pessoa, Glauber Rocha, Ágatha Cristie, Sidney Sheldon e tantos outros. Veri dormia ao lado, no sofá. E a sala, por instantes, se tornou uma apoteose de sentimentos. Os melhores. Os maiores. E os mais dolorosos.
HIGH HOPES
Acordamos cedo, como sempre, nos dias de semana. Pink acordou conosco. Nossas cadelas mostravam todo o seu ciúme em latidos desesperados do quintal. Doeu olhar aquele cão feliz com nossa presença. Não o adotaríamos, mas, ele já tinha nos adotado desde o primeiro instante. Ele seguia Veri pela casa, sempre com o rabinho pra lá e pra cá. Ele nos queria. Já se sentia nosso. Já demonstrava afeto por certos cantos da casa. Parecia estar se acostumando ao novo lar, enquanto nós nos preparávamos para o inevitável adeus. A dor aumentava. Redobrava. Mas, a dor era precedida de grandes esperanças, afinal, Pink teria um lar que pudesse acolhe-lo com toda a estrutura que merecia.
Abaixada na porta, Veri dava as últimas carícias e proferia as derradeiras palavras. No coração de Pink tudo se configurava o contrário. Ele achava que a esperaria no portão para mais um dia de afeto. Para, enfim, formamos uma família. Veri custou mais que deveria em sua primeira e última manhã com Pink Floyd, o cão que nos apareceu como um diamante louco e sem brilho. Ela teve de sair, o empurrando de leve com os pés, pois Pink queria segui-la até o trabalho. Ela se foi e aposto que carregava o frágil coração em alguma das mãos.
DOGS
Agora, éramos Pink e eu. E era minha vez de passar os momentos que deveria com ele. Mas, tinha de trabalhar. Pelo menos, tentar. O que não foi possível. Meu dia foi dedicado a vida futura de Pink. Foi dedicado a procurar segundas opções caso Seu Marcos não aparecesse ou desistisse. Graças a Deus, adotei a tática de não dispensar possibilidade alguma. Pink seria o grande vencedor, no final das contas.
E nessa manhã, ele não saiu da porta do escritório. O tempo inteiro me olhando com seus imensos olhos de amor.
Uma buzina ressoou lá fora e fui até o portão. Era Seu Marcos com um amigo. Fiquei feliz por estar indo para as mãos de alguém decente como ele. Pink, enfim, veria as pessoas sob a ótica que queria: eternas. Seu Marcos entrou, olhou para Pink e mudou um tanto a fisionomia. Seu riso não era o mesmo e ele disse que cederia a seu amigo que implorara mais cedo pelo cão para dar a seu filho. Ele saiu com a promessa de voltar com o amigo. Mas, o que recebi foi um telefonema. Eles não queriam Pink por ele já ser adulto.
Nessa hora, Pink repousava como uma criança no meio da sala.
BREATHE
“Respire, inspire o ar
Sem receio de se envolver
Vá, mas não me deixe
Olhe em sua volta e escolha seu próprio chão”
No almoço, Veri ficou sabendo da desistência e ficou nitidamente decepcionada. As pessoas possuem um intrínseco preconceito com cães adultos. Será que ninguém consegue enxergar os olhos de amor de Pink? Seu coração é muito maior que sua idade.
Mas, a luz ainda haveria de chegar. Sempre há uma luz e para sempre haverá. É tudo o que sei.
ECHOES
E essa é a penúltima parte da nossa história. É a parte em que chego em casa e me agacho diante de Pink. E ele, inexplicavelmente, demonstrou por mim o mesmo amor inexplicável que demonstrou por Veri. Conversamos. Eu o afagava enquanto lhe falava tudo o que meu coração gritava. Ali, em meio a sala, éramos dois adultos com a pureza de duas crianças. Ali, naquele instante, aprendi lições valiosas sobre o amor. Mais ainda quando fui ao escritório trabalhar e Pink me acompanhou, se alojando embaixo da minha cadeira. Já pensava nas possibilidades de adaptação da casa para recebê-lo quando Albert, um dos que me prometeram a adoção, me ligou.
– Ithalo, estou indo pegar o “Rompe Nuvens”, seu nome temporário!
Claro que fiquei feliz. Mas, seu nome continuaria a ser o mesmo dado por Sid Barret a sua icônica banda.
THE MOON
– Olha, vai ficar tudo bem. Eu prometo. Confia em mim? Confia? Confia que vivemos a eternidade em um dia? Aprendi muito com você. Aprendi sobre amor, sobre a força absurda do abandono e sobre tantas outra coisas que não saberia elencar. Sei que você não está entendendo nada do que falo, mas, pode sentir como ninguém o que te passo através dos carinhos que te faço na cabeça e na barriga, que você insiste em mostrar pra que eu afague. Vá e seja feliz. Nós estaremos sempre contigo. Vem, Pink, vamos findar a nossa busca por eternidade.
Esse foi o papo que tive com ele no instante em que se escondeu atrás da cama para não ser levado por Albert e seu amigo. Ele não queria nos deixar. Foi dolorido. Muito dolorido. Mas, uma dor necessária, lúcida. Uma dor que guardei pra mim. A ele, reservei meus olhares de esperança e alegria. Ele se foi, com a promessa de ser bem cuidado e tratado como deveria. Liguei para Veronica, com quem falava minutos antes de adoção definitiva de Pink, às lágrimas. Ela foi uma das amigas que mais acompanhou essa breve história com intensidade e em tempo real. Acho que foi a única com tal intensidade. Tive o acalento que precisava na hora e consegui ligar pra Veri mais calmo. Ela se emocionou. Eu me emocionei. E, em algum lugar distante, eu sabia que Pink podia sentir tudo.
Agora ele estava do lado certo da lua.
Ithalo Furtado
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