Resenha: Fernando Temporão
1. Quem não gosta de samba bom sujeito não é? Eu, particularmente, estendo esse belíssimo verso de Dorival para: quem não gosta de música bom sujeito não é. Claro que ainda vale a questão do gosto, mas, ainda que bradem que gosto não se discute, acho válido lembrar do que escreveu o historiador da arte alemão Ernst Gombrich em seu célebre livro A História da Arte: “o antigo adágio de que gosto não se discute pode até ser verdadeiro, mas não deve esconder o fato de que gosto é suscetível de desenvolvimento.”
2. Para esse exercício de gosto existem possibilidades quase infinitas, é verdade, mas penso em falar de uma particular. Trata-se do primeiro disco do compositor carioca Fernando Temporão, que tem produção assinada por Kassin e Alberto Continentino, além de participações de peso como a de Arthur Verocai e Domenico Lancellotti.
3. Já na capa, com dominantes tonalidades de violeta, é possível sentir o que é o disco, sua energia e calor. Um disco que abraça os ouvidos e faz movimentar o corpo, pé a pé, quadril a quadril. Alegre e contagiante, mas também profundo e sentimental. Aliás, nenhuma dessas qualidades é excludente uma da outra, sendo assim, “De Dentro da Gaveta da Alma da Gente” é um trabalho abrangente, confortável como casa com espaço na sala suficiente para receber os amores e os amigos e fazer longas cantilenas.
4. As canções mesclam diversos estilos, da guitarrada ao charmoso brega setentista, sempre com criatividade sonora e com as letras inteligentes e sensíveis de Fernando Temporão, que costuram o cotidiano na pele das relações com grande precisão. Não uma precisão acadêmica, mas uma que é mais natural, como a que encontramos nos pescadores fazedores de redes pelos litorais do país afora, que sabem quase que instintivamente o que fazer para manter firme cada um de seus nós. Trata-se de necessidade. Se a rede for fraca, mal feita, o pescador voltará para casa sem o alimento de sua família. Da mesma forma, os nós que Fernando faz devem ser firmes para que possa alimentar uma multidão de ouvintes. Se ele consegue? No momento, basta dizer que me sacio alegremente a cada audição.
5. Musicalmente estamos (re)amadurecendo. Não mais nos satisfaz a reprodução dos moldes anteriores, seja da música feita aqui ou em terras estrangeiras. O coração tem sido cada vez mais o norte dos nossos compositores e cantautores. Sem uma voz corporativa a sussurrar no ouvido o que deve ser feito e adaptado a cada passo, fica muito mais fácil fazer o que o desejo, o eros (leia-se tesão) pede e por isso nossa música está cada vez mais viva, mais autoral, mais contundente – tanto em nível intelectual quanto poético. É claro que não ignoro as facilidades e vantagens que um grande contrato pode trazer, mas estou apenas a reforçar um fenômeno que resulta da sagrada liberdade criativa.
6. Só assim para ousar tanto, para brincar com timbres e ritmos com uma firmeza que fica evidente em cada nota, em cada batida e em cada palavra proferida. A segurança de quem sabe exatamente o que quer falar e como quer falar.
7. Talvez por isso o disco seja tão vivo. Não, acho que me expressei mal. Também por isso (era o que eu deveria dizer) o disco de Fernando Temporão é cheio de vigor, de climas contagiantes que falam de mundos comuns, próximos de cada um de nós, mas de maneira única, evocando figuras como bambolês, retratos, janelas, chás e aviões.
8. O disco se mantém coeso, com arranjos que condizem com a proposta estética das letras. Tudo funciona exatamente como tem que funcionar (para alguns, mais especificamente pra mim, esse talvez seja o único ponto fraco do disco) e a audição assim torna-se indefectível. Composições como O que é bonito, Sem cair do céu e a faixa que dá nome ao disco cativam pela suavidade e pelas belíssimas intervenções dos arranjos orquestrais de Arhtur Verocai; enquanto Bambolê, Melancholica e Lua e maré integram a parte mais elétrica do álbum.
9. “De Dentro da Gaveta da Alma da Gente” se apresenta como disco solar de um cantor e compositor de grande talento e que, além de sentir e fazer, sabe pensar música, integrando um seleto time de músicos que estão interessados em desdobrar as possibilidades do fazer musical para além do terreno comum.
10. Onde isso vai dar? Graças aos deuses sempiternos, não sei dizer. E nem quero, contanto que a criatividade e a capacidade de ousar continuem a ter papéis fundamentais nesse processo. O que sei é que esse disco, tropical, mas com a intenção e potência de ser do mundo inteiro, pode ser um interessante ponto de referência.
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