A noite, o bar e o adeus de Aline Lessa

A noite, o bar e o adeus de Aline Lessa

Se você pretende entender a alma desse disco – e tem gosto por sínteses em forma de canção -, apenas pule para a quinta faixa, feche os olhos e tente, dolorosamente, pensar em seu último adeus. “Sentei no bar, não pedi nada, olhei pra dentro, é madrugada e eu não sei de você”. Assim é o espírito – não só de Hoje falo por mim, segundo disco de Aline Lessa -, mas de todas as canções dessa excelente compositora carioca dos olhos da cor do mar de Ipanema.

Pra quem acompanha a carreira da Aline desde o início, deve lembrar do ano de 2015, quando ela lançou seu disco homônimo de estreia e entrou para o casting geral da dita Nova MPB ou como você quiser chamar a nova geração da música brasileira. Do rock’n’roll da Tipo Uísque à introspecção do novo trabalho, muita coisa mudou. O olhar triste materializou suas solidões em um dos mais belos álbuns daquele ano.

Mas o céu do Rio nem sempre tem a cor do olhos de Aline. Afinal, eles quase não dizem pelo azul vivo que carregam. Aline está mais para o cinza dos bares sujos da Zona Sul. Como uma Maysa dos novos tempos, desfila sua melancolia sem culpa ou calamidade. Tampouco parece ter medo de ser considerada brega ou datada, afinal, quando o adeus será motivo de discussões temporais? Sempre estaremos à solta, vulneráveis ao cansaço do outro ou ao nosso próprio cansaço.

Cansaço, cansaço… como o de Pessoa, já vem tatuado em O seu amor, que carrega um dos mais lindos versos do álbum – “E é um perigo, que um coração feito de vidro quando cai passa a cortar”-, anuncia uma situação que parece suceder o que houve em Eu me cuido e – como quem trata o disco feito um curta-metragem e tem total controle do roteiro -, antecede a cena digna de um Fellini em Não sei de você, síntese da obra, Sob medida de Chico, a tal sexta-feira triste e desesperada que Cícero cantaria anos atrás em seu debute.

A releitura de Indiferença não me soou como a novidade ou ponto alto. Apesar de se apresentar numa versão que me permitiu – pela primeira vez – apreciar a letra de forma orgânica, o que me tocou em Hoje falo por mim foi seu cerne trágico, escancarado e cruel.

Caio Fernando Abreu, em uma de suas mais famosas cartas, diz nunca ter conhecido alguém tão triste e profundo quanto Clarice Lispector. Como amigo pessoal que me tornei, afirmo, irreparável, que conheço poucas pessoas tão profundas quanto Aline, com pouca sede de matéria e muita fome de sentido. Sua desconexão proposital da tendência indie dos novos compositores é justificada por seus discos, trens de velhas estações que nos transportam – e na faixa Hoje, tal sensação se torna ainda mais viva -, para a época em que Dolores Duran se apresentava pelos bares do Rio ou quando Edith Piaf cantava por moedas nas esquinas da Paris do início do século XX.

Disco: Hoje falo por mim (2017)
Artista:
Aline Lessa

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Escritor, compositor, produtor cultural e geminiano. Prefere orquestrar silêncios que causar barulho. É fã das canções que só são absorvidas usando fone de ouvido num lugar isolado.

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