Resenha: O Alumbramento de um Guará Negro numa Noite Escura
Já passava das seis horas da tarde quando chegamos à estalagem situada na beira de uma estrada de terra no interior da Bahia. Não sei ao certo se era por conta da pouca luz e do barulhar quase noturno dos pequenos insetos ao redor, mas tudo ali me remetia à solidão. Não só da solidão doída, que martela o peito e angustia. Era também daquele tipo contemplativo de solidão, como aquela que sentimos quando estamos de frente para o mar – mesmo quando estamos acompanhados seja de quem for. No rádio da recepção (uma pequena sala com duas poltronas e um tamborete junto ao balcão de mogno quase improvisado), uma moda de viola lutava bravamente para ser ouvida entre os chiados.
Éramos eu e o André (pacato sujeito da cidade grande e amigo que havia concordado em me acompanhar na viagem cujo intuito era conhecer alguns lugares da região onde nasci e que tão pouco explorei durante a infância), que tinha ido negociar o valor do pernoite enquanto eu aguardava na varanda humilde e muito aconchegante para quem não via um teto em mais de doze horas de estrada. Quando volta, senta-se nos degraus de madeira na entrada da casa e comenta:
—Vai sair mais barato do que pensávamos.
—Ah, é? Isso é bom, já que não temos muito para gastar e ainda falta um bom pedaço de chão para chegarmos ao próximo destino – comentei.
—Parece que o movimento aqui não é dos grandes, mas não é só isso – falou enquanto acendia um cigarro –. Você não sabe da melhor, não é só por causa do isolamento que isso aqui está vazio assim.
—Para de suspense e fala logo o que é, caramba.
Fez uma pausa, mais para dar um ar dramático do que por necessidade de tragar o cigarro, e por fim revelou:
—Uma onça-preta.
— Quê?
Devo ter arregalado demais os olhos quando perguntei, pois André me olhou de volta com uma expressão cômica de espanto. Em seguida, continuou:
—Isso mesmo que você ouviu. Tem uma onça-preta nas redondezas. Inclusive, os únicos dois hóspedes daqui são caçadores e vieram justamente para “dar um jeito” nela, pelo menos foi o que a dona daqui contou.
Não me surpreendi com o fato de pessoas estarem lá para “dar um jeito” no animal, ficaria surpreso se fosse o contrário, se estivessem lá para ajudarem na sua preservação sem a necessidade de captura ou algo do tipo, já que é mais típico de nossa natureza destruir. O que fez com que eu me arrepiasse foi o fato de haver uma onça-preta, uma magnífica onça-preta “perto” de mim. Quando era criança, sempre ouvia a minha avó contar famosos causos entre onças e caçadores, que quase nunca acabavam bem para os felinos, já que a ideia era mostrar o quanto a coragem era um valor importante a um homem do sertão. Porém, em alguns momentos, contava sobre onças encantadas, de coloração negra, que representavam a força da natureza e que sempre conseguiam enganar os homens graças aos seus dons sobrenaturais.
Ficamos calados por alguns instantes, contemplando a beleza que se estendia diante de varanda – uma larga faixa de mata, com árvores grandes e frondosas. A noite chegava com calma, sem pressa, fazendo cair sobre elas um silêncio de estrelas. As luzes já brilhavam no interior da casa de dois andares, de aparência rústica, mas com um charme que era anterior a toda conceituação arquitetural que cerca os prédios feios das grandes cidades. Fora os postes, que contornavam a estrada e as luzes da estalagem, tudo era breu. Alguns vagalumes riscavam o céu ainda timidamente enquanto os grilos ensaiavam serenatas ao pé da janela. Depois de conhecermos os arredores do local, guardamos nossas coisas nos quarto, um pequeno e humilde espaço mobiliado com duas camas ao lado da janela, um abajur e um criado mudo e fomos atraídos à cozinha feito dois cães sabujos pelo cheiro de café recém-passado. Lá, pela primeira vez, avistei os dois outros hóspedes do lugar. Dois homens altos, de vestes simples e com semblantes tão carregados quanto as espingardas que descansavam aos pés da mesa, olhos tristes e cansados, que poderiam muito bem ser confundidos com severidade.
Fui para a cama logo após o jantar, já o André preferiu dar uma volta lá fora, fumar alguns cigarros e olhar as estrelas, um programa que eu adoraria fazer caso não estivesse inteiramente desgastado das horas passadas em viagem. Abri a janela para dar uma olhada no céu. Era outro universo, outro mundo, encantador e misterioso feito sorriso de mulher. A imensidão se fazia presente na escuridão, como uma porta aberta pela qual não se consegue vislumbrar o que lá dentro existe. Era uma sinfonia de sentidos. Sons, cheiros, paisagens, tudo era mais intenso e pungente. Era noite. Apanhei o meu celular, não para verificar chamadas ou mensagens, mas para procurar o disco que parecia perfeito para o momento, uma trilha capaz de responder à altura esse momento. O nome do disco é O Alumbramento de um Guará Negro em uma Noite Escura, o primeiro trabalho solo do cantor, multi-instrumentista e compositor mineiro Bernardo Puhler. Coloquei os fones e me debrucei sobre a janela, dividindo a minha atenção entre as estrelas e os arredores, e vi que os dois homens conversavam ao lado da varanda, iluminados pela fraca luz de um poste improvisado.
Pensei na majestosa criatura que poderia estar espreitando a casa, observando o movimento com olhos cintilantes, se movimentando elegantemente por entre as folhas e galhos sem fazer barulho, escondida em sua própria existência, como muitos de nós. Aquela onça-preta era como o guará negro do disco do Bernardo, era um pedaço de mim, de cada um nessa casa e no mundo, vagando só em densa mata escura, noite após noite. A poesia do vagar, do transeunte que se demora pouco nas veredas da vida, do estar sempre entre um começo e um fim, tudo isso incrustado em música feito diamante em pedra bruta. A dificuldade em avistar o animal é também metáfora para a dificuldade de olharmos para nós mesmos, porque também estamos sempre nos escondendo em nossa própria noite escura, mas Bernardo tomou coragem e se deixou entrever sob a luz do luar.
Certa tarde, em uma conversa animada durante a audição do disco em Belo Horizonte, uma amiga se atenta aos versos “E as mulheres de seios pequenos me comovem feito os sertões”, da música Aracy, e pergunta o motivo da comoção (era porque eram tristes, sublimes ou bonitos?), ao que Bernardo, feliz pela oportunidade de poder clarear um pouco mais o ambiente do álbum, responde:
—A mim essa imagem dos seios pequenos como sertão encanta porque é cru, verdadeiro. Tem certa submissão subversiva nesse caráter minimalista… é um cenário que aparentemente é pobre (feito os sertões) mas esconde as maiores profundezas, e tem também a questão geográfica: dali, de um monte menor, é tão mais perto do “coração selvagem”. Vou me conter agora, por alguns segundos eu pensei em escrever um livro só sobre isso… é sublime, é bonito, é legítimo.
Foi certeiro e encantou a todos os presentes com aquela refinada arqueologia de significados. Pensei em uma digital do sertão (e, talvez pela forte presença de programações eletrônicas, também pensei em um sertão digital – na solidão dessa era líquida). A comoção que cada canção promovia em mim, com arranjos que mais pareciam um sussurro, um barulhar de vento sobre folha nas paragens da alma da gente, me fez entrar em estado de imersão. Aproveitei o momento para fazer algumas perguntas que estavam fervendo em minha cabeça:
—E a ideia para o título? – eu quis saber.
—Ler “Alumbramento” como iluminação proporciona uma contraditória percepção do título. Há em “Negro e Escura” um reforço intencional da cena, pesando-a. Esse conflito na relação de sentido das palavras intenta reproduzir os aspectos da linearidade do disco e de seu fluxo. Há um caminho, uma cronologia, o Guará percorre um espaço físico (geográfico) e emocional que vai da escuridão a um encantamento (do cerrado ao Espinhaço). Não que a escuridão deixe de acontecer ao final do álbum, mas ela passa a ser vista de outra forma. “Alumbramento” pontua também a solução cientifica que dá origem ao trabalho, é a descoberta de um lobo preto através de uma fotografia feita numa noite escura. Propositadamente quis também que o nome tivesse essa longitude, horizontalidade, feito nome de livro, porque é história, precisa ser lido em etapas pra ser entendido.
—E o que a figura do guará negro significa musicalmente para você? – questionei, já tendo em mente a possibilidade de escrever sobre o álbum em algum momento.
—Ah, eis a pergunta que já traz a resposta em si – disse com uma expressão divertida –, condiz com minha expectativa sobre o seu trabalho. Quando recorro a um animal como esse, estou primeiro considerando suas peculiaridades para em seguida adotá-las no sentido metafórico. O Lobo-guará é um animal de hábitos solitários e noturnos. Considere que este é meu primeiro trabalho solo que se propõe a retratar um contexto onde a noite é a protagonista. Fica então evidente por que me identifiquei imediatamente com esse bicho. Essa é, aliás, uma relação que tenho com Guarás desde a infância. A cor negra está impressa na sonoridade, são canções escuras nos arranjos, na poética, nos timbres e na instrumentação. Quando este animal se impõe como algo novo e inesperado na ciência me faz querer de todas as formas que meu processo criativo também seja dotado desse frescor. E é de fato, não de tal maneira pretensioso no cenário da música, mas novo pra mim. Algumas dessas canções me surpreenderam durante a feitura, precisei me reinventar pra aceitá-las.
Reinventar-se. Essa palavra sempre me foi querida, tanto no meu trabalho como na vida particular, e agora ela tomava outra dimensão, a do outro, a de alguém, que não sou eu, reinventando-se, indo além da fúnebre sentença “conhece-te a ti mesmo”. Achei que era o bastante no momento, pois queria aplicar também a minha arqueologia pessoal antes de saber de maiores detalhes.
De volta ao pequeno quarto no interior da Bahia, vi os dois homens, cada um com um farolete em mãos e espingarda nas costas, se embrenharem na mata logo depois da cerca do outro lado da estrada. Partiam em uma missão infame, sustentada por um profundo desrespeito pela vida e também por um antropocentrismo desenfreado introjetado em nossas por gerações e gerações que nos precederam. Nos fones ecoavam as últimas notas de Mato Verde, Monte Azul, faixa que encerra O Alumbramento de um Guará Negro numa Noite Escura. A voz marcante de Bernardo unindo-se à flauta quase mágica de Alexandre Andrés (também participam do disco Yuri Velasco e Frederico Heliodoro), criando uma atmosfera envolvente, chamando para o mundo de dentro, para uma caminhada ao luar de encontro ao magnífico lobo-guará negro.
Pensei ter visto algo se movimentar na mata à frente, há poucos metros da cerca de arames. Cerrei os olhos para tentar ver melhor se realmente existia algo ali e por um milésimo de segundo pensei ter visto um par de olhos brilharem em meio à vegetação baixa. “Hora de dormir”, pensei enquanto fechava a janela, certo de que era eu ali na mata, errando pela noite escura, fora do alcance das fracas lâmpadas elétricas e dos olhos do homem.
Antes de desligar o celular, enviei uma mensagem para o Bernardo:
—Finalmente entendi: no fundo, era mesmo um Guará negro.
Recommended Posts
Lori | Cuore ApertoLori
novembro 16, 2023
Ronná apresenta “Meio Eu”
outubro 27, 2023
AIACE | EU ANDAVA COMO SE FOSSE VOAR
outubro 06, 2023