Tradição e Tradução: o farol incandescente do Ilumiara

Tradição e Tradução: o farol incandescente do Ilumiara

O trabalho humano. A voz como combustível para ações práticas que envolvem o esforço físico. O grito que atrai o freguês na feira. O alívio ou excitação que só a cantiga certa, no momento certo, pode proporcionar. Música e homem ligados intimamente pela labuta, pelo trabalho árduo com o qual civilizações inteiras se ergueram.

Formado por Alexandre Gloor (rabecas), Carlinhos Ferreira (percussão), Leandro César (violão e marimba), Letícia Bertelli (voz) e Marcela Bertelli (voz), o Ilumiara revisita uma parte importante da história das canções de trabalho no país, através do convívio com profundos conhecedores dessa tradição em Minas Gerais e do vasto acervo de pesquisas feitas por Ayres da Mata Machado e Mário de Andrade, entre outros.

Sobre o nome do grupo, Leandro César explica: “Ilumiara é uma palavra forjada por Ariano Suassuna (1927-2014). Iara tem um significado de ser um altar de beira de rio e ela é fundida com ilumiar/iluminar. Então, fica algo como “lançar luz sobre um altar de beira de rio”. Ele também aponta para o fato de que Suassuna usava essa palavra para poder tratar de determinadas obras artísticas que eram como “altares” – como, por exemplo, a casa do próprio autor, onde o grupo se apresentou recentemente para a família dele. O nome, inclusive, foi concedido para o uso dos integrantes pelo próprio Ariano Suassuna. “A obra musical do povo é também uma iara e, de certa forma, nosso objetivo é lançar luz sobre ela”, completa Leandro.

Com esse primeiro trabalho, o o grupo mostra o quanto é antigo o papel prático da música dentro da vida social do homem. Seja através dos batuques que davam ritmo aos afazeres comunitários, das músicas que acompanhavam o processo de plantio e das cantigas para celebração das colheitas, a música, desde tempos imemoriáveis, foi e ainda é uma parceira indispensável para nós. Por isso, em tempos onde a impressão que temos é a de que nos esquecemos dessa relação íntima entre homem, corpo e música (substituída por altíssimos níveis de abstrações quase esquizofrênicas), os esforços empreendidos pelo Ilumiara e seus parceiros são de uma importância gigantesca.

Um “resgate” de tradições implica diversas problemáticas e uma das maiores é a questão da hibridação. Como bem aponta o antropólogo argentino Néstor García Canclini no seu clássico “Culturas Híbridas”, o processo de hibridação não se dá apenas através da docilidade dos elementos, como se o mesmo processo fosse um fenômeno impossibilitado de gerar conflito e resistência. Na introdução à edição de 2001 ele arremata:

“A primeira condição para distinguir as oportunidades e os limites da hibridação é não tornar a arte e a cultura recursos para o realismo mágico da compreensão universal. Trata-se, antes, de colocá-los no campo instável, conflitivo da tradução e da ‘traição’. As buscas artísticas são chaves nessa tarefa, se conseguem ao mesmo tempo ser linguagem e vertigem”.

O que esse disco faz não é uma emulação da tradição das músicas de trabalho, ele é uma verdadeira aula sobre como promover o encontro entre o passado e o presente, essas duas forças da História. A ideia de um álbum assim, antes de carregar uma simples missão folclórica e identitária na construção de uma nacionalidade, é uma maneira de mergulharmos no rio da memória afetiva de tradições que ainda resistem em alguns lugares do país. É tomarmos consciência de sua importância, não apenas como trampolim para supostos saltos revolucionários, mas como ponte que nos liga tanto ao passado quanto ao futuro.

Desde julho na estrada, eles têm uma agenda de 130 apresentações para cumprir por todo o Brasil, dentro da programação do projeto Sonora Brasil, do SESC Nacional. Ao vivo, se apresentam sem microfonação, construindo assim a sensação de se acompanhar de perto a lida. Não é ludismo, é sensibilidade e respeito para com a trajetória de quem verdadeiramente tinha a música como companheira e guardiã.

Sob a batuta de Kristoff Silva, Rafael Martini, Felipe José e dos próprios integrantes Leandro e Alexandre, as músicas escolhidas renascem para o agora como se fossem pinturas sonoras feita seguindo a mesma tradição de mestres como Cardosinho (1861-1947) e Djanira (1914-1979). Elas contam sobre a realidade e costumes de pessoas, sobretudo do mundo rural; nos ensinam as particularidades de seu vocabulário, de seus trejeitos e nos colocam em contato íntimo com suas visões de mundo através do trabalho e do fazer artístico.

Um disco bonito, inteligente, sensível e sem exageros. Um disco necessário.


Ilumiara Capa

Banda/Artista: Ilumiaria
Álbum: Ilumiaria
Ano: 2015

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Escritor, jornalista e editor. Responsável pela curadoria de conteúdo do Jardim Elétrico.