Confessionário: Sobre estar só

Confessionário: Sobre estar só

É preciso renunciar a calma, o conforto e a paz de uma vida inteira. Sair da cama que você sempre deitou e arrumar as malas que nunca desfez.

Jogar-se fora. É a primeira coisa a ser feita.

Depois disso, vai ser bem difícil dormir. Os primeiros meses serão lâminas sutis e afiadas. Escolha a melhor roupa, mude as coisas de lugar. São coisas da vida. São choques de opiniões.

Sua mãe vai ligar sorrindo com lágrimas na borda descosturada do vestido. Seu pai vai passar todas as noites em frente ao teu portão e você nunca estará olhando para a rua no momento. Seus irmãos, antes inimigos diários, passarão a te enxergar como um melhor amigo distante, uma base sólida que sempre estará ali, porque só será bom se estiver mesmo por ali.

Agora que serão separados, enfim, por caminhos e não por paredes.

Seus amigos vão estranhar as mudanças. O velho filtro inevitável vai tratar de anular os que nunca foram teus de verdade.

Você se terá mais do que nunca.

Você se será como nunca se foi.

Teus silêncios acordarão vizinhos.

Teus gritos serão ignorados.

A cerveja ficará cara e bem mais gostosa.

A chuva será um abrigo, afinal, você está na rua, no mundo, jogado aos caminhos mais confusos.

Seja-se. Obtenha-se. Abstraia. Distribua em si as fúrias e as alegrias na mesma proporção. Não permita que a ansiedade por vitórias e a loucura de uma fila de supermercado te danifiquem. Vista sua mais bonita fantasia de manhã. Nesse universo cinza e sem graça, o lápis de cor é você.

Vez em quando, “fugere urbem” sem culpa. É quando a alma precisa de estrutura. É quando a lágrima precisa de um esconderijo pra desintoxicar teu peito cansado de tanto coração endurecido.

É um tribunal a cada esquina.
Um noticiário a cada encontro.
Uma pedra em cada “por enquanto”.

As pessoas cometeram suicídio coletivo na terra da apreciação, no país da ternura, no mundo da delicadeza.

Logo agora que me encontro na mesma situação dos lírios e entendo mais que nunca todas as flores.

A vida se tece nas minhas raízes.

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Escritor, compositor, produtor cultural e geminiano. Prefere orquestrar silêncios que causar barulho. É fã das canções que só são absorvidas usando fone de ouvido num lugar isolado.