Legião Urbana V – 1991
by Pedro Cindio
Foi complicado colocar Legião Urbana em minha coluna. Quem me conhece sabe que não nutro admiração por esse grupo de Brasília. Mas eu vejo, com o olhar fora de admiração, que a banda teve sua importância na cena da música nos anos 80.
Convidei Rodrigo para escrever não apenas por ser um grande amigo, não só pelo fato de ser um dos melhores jornalistas literários que temos hoje. Mas sei também da admiração e como ele iria conseguir captar a essência da coluna. Não, você não irá ler sobre músicas que tocavam em rádios da Legião, vai ler sobre algo mais obscuro, melancólico.
Além disso, Rodrigo faz a própria cerveja. Então, nem a cerveja eu indico neste texto, tendo em vista que Rodrigo sabe muito bem como harmonizar o disco com a cerveja.
Portanto, delicie-se na leitura e na cerveja. E não esqueça de dar um pulo na PáginaCinco , onde o Rodrigo escreve diariamente sobre literatura.
Pois nasci nunca vi Amor
e ouço d’ el sempre falar.
Pero sei que me quer matar
Mas rogarei a mi senhor
Que me mostr’ aquel matador
Ou que m’ampare del melhor.
Quando fui convidado para “harmonizar” um álbum da Legião Urbana com alguma cerveja, passei um bom tempo pensando em qual dos trabalhos da banda escolheria. Vejo beleza em toda a obra do grupo, sem dúvidas o meu preferido, então optei por aquele disco que considero mais obscuro e enigmático, que ainda tem muito aos ouvidos mais atentos: o “V”, que, não por acaso, começa com uma cantiga de amor em português arcaico, ousadia rara de se ver por aí.
O que se segue é uma das letras mais profundas de Renato Russo: “Metal Contra as Nuvens”, na minha opinião a grande música do álbum que teve como hits “O Teatro dos Vampiros” e “Vento no Litoral” – e, com menor destaque, “O Mundo Anda Tão Complicado”.
Mas falemos de “Metal”: como boa arte, o significado da canção aqui é diverso, fala da era Collor, do confisco da poupança, mas fala também dos problemas de Renato, do seu alcoolismo, da sua relação conturbada com outras drogas, da então recente descoberta da Aids. Passa por tudo isso em versos como “Por deus nunca me vi tão só, a própria fé é o que destrói, esses são dias desleais” e “Tenho os sentidos já dormentes, o corpo quer, a alma entende, esta é a terra de ninguém, sei que devo resistir, eu quero a espada em minhas mãos”. No final, no entanto, o tom é otimista: “E nossa história, não estará, pelo avesso assim, sem final feliz, teremos coisas bonitas pra contar”. Interessante notar, aliás, como é possível perceber o otimismo de Renato mesmo em suas letras mais tristes. Sim, diferente do que prega certo censo comum, as pessoas que conviveram com o músico sempre dizem que ele era um cara alegre e “pra frente”, apesar das inúmeras crises pelas quais passava.
O “V” é um álbum no qual a Legião já estava com sua formação que se tornou clássica, com Renato acompanhado de Marcelo Bonfá e Dado Villa-Lobos. E se o disco começa com uma cantiga em português arcaico, o tom de “Metal” continua na linha medieval, estética que estará presente em diversas outras músicas do álbum, como “A Montanha Mágica” – canção repleta de simbologia e cujo título é uma referência à obra-prima de Thomas Mann – e “L’âge D’or”, referência ao filme de Buñuel e Salvador Dalí no qual tratam de dogmas da Igreja Católica (seguindo a mesma linha e continuando a falar de drogas, um dos versos mais marcantes da canção diz: “Já tentei muitas coisas, de heroína a Jesus. Tudo o que fiz foi por vaidade”).
Não passarei pelas músicas mais conhecidas já citadas e também não comentarei a respeito das duas instrumentais do disco (“A Ordem dos Templários” e “Come Share My Life”, retirada do folclore estadunidense), me falta repertório para “ler” músicas sem letras. Mas é ainda preciso falar sobre “Sereníssima”, que, apesar de aparentar ser alegre, não deixa muitas dúvidas de que trata de uma pessoa que passa por um momento bastante conturbado, de muitas dúvidas, ao trazer frases como “Consegui meu equilíbrio cortejando a insanidade”. Nela também temos mais uma referência de Renato a Thomas Mann – um de seus escritores favoritos, evidentemente -, “Tenho um sorriso bobo, parecido com soluço” é um trecho retirado da novela “Tônio Kroeger”.
Enfim, “V” é um disco lento, repleto de mensagens cifradas, com músicas que tem uma pegada pouquíssimo pop, indo na contramão de seu antecessor, “As Quatro Estações”, com seus diversos estrondosos sucessos, como “Há Tempos” e “Quando o Sol Bater na Janela do Teu Quarto”. É preciso coragem para rejeitar a fórmula que dera tão certo imediatamente antes. É preciso coragem e um grande talento para compor muitas das letras que Renato compôs.
E é preciso atenção e paciência para descobrir o que o “V” ainda tem a oferecer, principalmente àqueles que conhecem apenas as músicas da Legião que tocam nas rádios (deixo o aviso, o lado B da banda é muito melhor do que a chatinha “Pais e Filhos” e a adolescente demais “Que país é esse?” – em termos de protesto, fique com “Perfeição”). Uma boa pode ser colocar o álbum para tocar e abrir uma cerveja que também peça calma para ser degustada e que possa te acompanhar durante a quase uma hora de imersão nas músicas.
A recomendação para tal é a Modern Dogma, uma imperial porter de 9% de álcool feita em parceria entre os cervejeiros ciganos da Dogma, de São Paulo, e os estadunidenses da Modern Times, cervejaria que vem despontando lá para as bandas do norte. A receita leva café e cacau, o que deixa a bebida ainda mais complexa, apresentando, além de notas desses temperos, algo que lembra frutas secas. Negra e com corpo aveludado, é cerveja para bebericar aos poucos – ao aquecer no copo, ela inclusive apresentará virtudes que jamais seriam percebidas se ela se mantivesse muito gelada. Abra uma, sirva-se de uma porção de gorgonzola e parmesão e ouça o “V”. Depois diga aí o que você achou!
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